Cassilândia
Coluna Linguística - Gramática e gramáticas (Parte 02)
Por Gabriel Pinheiro*

Se você escuta a palavra “gramática” e imediatamente visualiza aquele livro grosso, de capa dura e cheiro de biblioteca, não se sinta sozinho. A maioria de nós cresceu associando essa palavra a listas de regras, verbos em colunas e frases riscadas com lápis. Mas a origem desse termo é muito mais antiga — e, acredite, bem mais interessante.
A palavra vem do grego grammatikḗ, que significava, literalmente, “arte das letras” — ou seja, o saber da leitura e da escrita. Já no latim (grammatica), o termo ou a ser sinônimo de erudição linguística, reservado a poucos: monges, copistas, mestres das palavras. Desde o começo, falar “corretamente” não era apenas uma questão de se fazer entender — era também uma forma de mostrar status. Saber escrever era um poder, e gramática, uma senha de o ao clube dos letrados.
Séculos depois, essa tradição ganhou musculatura. No embalo da ascensão das monarquias europeias e da criação das línguas nacionais (século XVI em diante), começaram a surgir os primeiros manuais de gramática normativa: livros que diziam, com todas as letras, como “se deve” escrever. E quem decidia isso? Não era o povo da feira ou da roça — era a elite, os doutos, os homens da corte. O modelo dessas gramáticas se inspirava no latim culto e nos padrões escritos da nobreza. Isso tudo explica por que, até hoje, aprendemos um “português certo” que tem pouco a ver com o que se fala no cotidiano.
E é aí que muita gente se confunde: gramática normativa, norma culta, norma padrão — tudo parece a mesma coisa, mas não é. A gramática normativa é o conjunto de regras que orienta a escrita formal. A norma culta é a variedade linguística usada nos meios acadêmicos e jornalísticos — ela muda, embora devagar. Já a norma padrão é a forma “polida” dessa norma, cristalizada nos livros didáticos, nos vestibulares e nos editais de concurso. As três convivem, mas têm funções e histórias diferentes.
O problema não é que elas existam — é o peso que se dá a elas. Durante muito tempo, essas estruturas foram usadas como régua para medir (e excluir) quem não falava conforme o modelo dominante. Os linguistas vêm mostrando, com razão, que isso não faz sentido. Toda pessoa fala de acordo com a gramática que aprendeu em seu contexto social. E isso não é erro, é competência linguística — um conceito bonito e poderoso. Saber adaptar sua fala ao ambiente, alternar registros, escolher palavras conforme a situação… isso sim é dominar a língua e não o contrário.
Por isso, essa coluna lança um convite para você, caro leitor. O português formal sempre terá seu lugar, claro. Mas vamos ampliar o nosso olhar. Para, assim, falarmos da língua como ela realmente é: viva, diversa, feita de gente. E, com cada nova crônica, desamarrar um pouco os nós que ainda tentam calar vozes legítimas, cheias de gramática própria — embora invisibilizadas pelos velhos manuais.
*Gabriel Pinheiro é professor, psicopedagogo e mestrando em Linguística pela Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp.