Cassilândia
Coluna Linguística - Religião, poder e a origem dos estudos das línguas
*Por Gabriel Pinheiro

Antes de ser matéria escolar, a gramática foi um gesto de fé. Não começou como uma invenção de professores, mas como necessidade de sacerdotes.
Na antiga Índia, os primeiros a pensar sistematicamente sobre a linguagem não o fizeram por curiosidade acadêmica. O que os movia era o desejo de preservar, com precisão absoluta, os versos sagrados dos Vedas — textos que, para eles, continham não apenas ensinamentos divinos, mas o próprio poder do cosmos. Dizia-se que pronunciar mal uma sílaba era tão grave quanto inverter o sentido de um ritual. Assim nasceu o Vyākarana, a “análise” linguística — um dos primeiros esforços de organizar sons, formas e sentidos da língua falada em estruturas compreensíveis. Pānini, autor de um tratado com mais de quatro mil regras, tornou-se um nome seminal nessa história. Seu trabalho, árido e refinado, não era motivado por vaidade intelectual, mas por reverência.
Mais tarde, no Ocidente, um movimento parecido aconteceu. Os gregos, guiados pela filosofia, começaram a investigar o sentido das palavras e a relação entre o nome e a coisa nomeada. Em seguida, os romanos adotaram e moldaram essas ideias, mas com outro objetivo: disciplinar o latim — e, por consequência, o povo que o falava. O latim clássico era a língua da República, das elites, da urbanidade. À medida que o império se expandia, surgia também o medo de que a língua se corrompesse nas bocas das províncias e das classes mais baixas. Assim, como num reflexo, surgiram gramáticas normativas, códigos do que se devia dizer e do que devia ser evitado.
Por trás da busca pelo “bom uso” da língua, havia sempre um projeto de mundo: preservar uma ordem. Quem falava certo pertencia à cidade, à corte, à fé — quem falava diferente era, muitas vezes, tratado como ignorante, bárbaro, herege. A gramática, assim, tornou-se um instrumento de distinção. Guardava a língua como se guarda um templo: com zelo, mas também com exclusão.
Ler essa história é lembrar que as palavras não carregam apenas significados — carregam heranças. Quando hoje alguém corrige um "nós vai" com desdém ou ironia, talvez ecoe, sem saber, séculos de uma tradição que confundiu linguagem com hierarquia. E talvez esse seja o nosso papel agora: estudar a gramática não para proteger o altar da norma, mas para abrir as portas da linguagem como território comum.
*Gabriel Pinheiro é professor, psicopedagogo e mestrando em Linguística pela Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp.